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sexta-feira, 17 de abril de 2009

Dia de contos...

Bibl ioteca
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Vento Frio
H. P.
Lovecraft
1
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Vento Frio
Indagas-me por que receio as rajadas de vento frio; por
que tremo mais que as pessoas comuns ao entrar num
aposento gélido e sinto náusea e repulsa quando a friagem
da noite se insinua, furtiva, pelo calor de um suave dia de
outono. Há quem diga que eu reajo ao frio de modo
semelhante ao que outros reagem ao fedor, e serei o
último a desmentir essa impressão. O que farei será relatar
a situação mais horripilante em que já me encontrei e
deixar a ti a tarefa de julgar se ela representa ou não urna
explicação satisfatória para essa minha esquisitice.
É falso imaginar que o horror esteja associado
indissoluvelmente com o negrume, o silêncio, a solidão. Eu
o conheci no esplendor fulgurante de urna tarde de sol, em
meio ao clangor da metrópole e no ambiente apinhado de
uma pobre e comuníssima casa de pensão, tendo a meu
lado uma senhoria prosaica e dois homens robustos. Em
meados de 1923, eu conseguira um emprego enfadonho e
pouco rendoso numa revista, em Nova Iorque; e na
impossibilidade de pagar o aluguel de uma moradia
decente, comecei a vagar de uma pensão barata para
outra, em busca de um quarto que combinasse as
qualidades de limpeza adequada, mobiliário tolerável e
preço bastante módico. Constatei, antes que passasse
muito tempo, que só me restava optar entre diferentes
males; entretanto, pouco depois dei com uma casa na Rua
14 Oeste que me repugnava muito menos do que as outras
que eu havia experimentado.
Era uma mansão de grés pardo, com quatro pavimentos,
que datava aparentemente de fins da década de 1840, com
mármores e madeirames cuja magnificência enodoada e
manchada lembrava que no passado o prédio conhecera
altos níveis de elegante opulência. Os quartos, amplos e de
enorme pé-direito, decorados com um papel de parede
inacreditável e com cornijas ridiculamente complicadas,
tinham um deprimente bafo de bolor, bem corno um vago
cheiro de cozinha; entretanto, o chão era limpo, a roupa de
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cama bastante aceitável e a água quente nem sempre
estava fria ou desligada, de modo que vim considerar a
casa como um lugar pelo menos suportável para hibernar
até poder realmente voltar a viver. A senhoria, uma
espanhola desmazelada e quase barbada, chamada
Herrero, não me amolava com mexericos ou reclamações a
respeito da luz que eu deixava acesa até tarde em meu
quarto, no terceiro andar, dando para a rua; e os demais
pensionistas eram tão sossegados e calados quanto se
poderia desejar. Eram na maioria espanhóis, só um pouco
acima do nível mais grosseiro e ínfimo. O único motivo
realmente sério de aborrecimento era o ruído dos bondes
na rua.
Eu já estava residindo ali bem umas três semanas quando
ocorreu o primeiro incidente insólito. Certa noite, por volta
das oito horas, escutei um barulho como que de líquido que
caísse no chão, e de repente me dei conta que já fazia
algum tempo que o ar estava impregnado de um
penetrante odor de amônia. Olhando em torno, vi que o
teto estava molhado e gotejante; parecia que a infiltração
provinha de um canto do lado que dava para a rua. Ansioso
por cortar o mal pela raiz, desci depressa para falar à
senhoria, que me garantiu que o problema seria logo
resolvido.
- El doctor Muñoz - comentou ela, subindo as escadas
correndo, em minha frente - deve ter derramado seus
produtos químicos. Está fraco demais para cuidar de si
próprio... cada vez mais fraco... pero no tiene nadie que
pueda ayudarlo. E muito esquisito com essa doença dele...
toma banhos de cheiros estranhos o dia inteiro, nem pode
ficar nervoso ou sentir calor. Ele mesmo arruma o quarto...
o quartinho dele vive cheio de garrafas e máquinas e ele
não pratica mais a medicina. Mas antigamente ele foi
famoso... mi padre ouviu falar dele em Barcelona... e há
poco tiempo tratou o braço do bombeiro que cuida do
encanamento e que começou a doer de repente. Ele nunca
sai, só vai até o terraço, e mi hijo, Esteban, traz, para ele
comida, roupa limpa, remédios e produtos químicos. Diós,
a quantidade de sal amoníaco que esse hombre usa para
se refrescar!
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A Sra. Herrero desapareceu pela escada do quarto andar e
eu voltei para meu quarto. A amônia parou de pingar e eu
sequei a que havia caído. Enquanto abria a janela para
arejar o cômodo, ouvi os passos pesados da senhoria no
andar de cima. Quanto ao Dr. Muñoz, eu nunca havia
escutado seus passos, lentos e macios. Só havia escutado
um ruído que parecia ser o de um mecanismo com motor a
gasolina. Fiquei a imaginar, por um momento, qual poderia
ser a estranha enfermidade desse homem e se sua recusa
obstinada em aceitar auxílio não resultaria de uma
excentricidade infundada. Lembro-me de ter tido um
pensamento banal, o de quanto é patética a situação de
urna pessoa eminente que decaiu socialmente.
Talvez eu jamais viesse a conhecer o Dr. Muñoz se não
fosse o ataque cardíaco que de repente me acometeu
numa tarde em que eu estava escrevendo em meu quarto.
Médicos haviam-me falado do perigo que representam tais
crises, e eu sabia que não havia tempo a perder; por isso,
ao me recordar do que a senhoria tinha dito sobre a ajuda
que o inválido prestara ao bombeiro, arrastei-me pela
escada e bati debilmente à porta do quarto que ficava em
cima do meu. Minha batida foi respondida em bom inglês
por uma voz curiosa, mais ou menos à direita, que me
indagou o nome e profissão. Uma vez respondidas as
perguntas, abriu-se um pouco a porta ao lado daquela em
que eu batera.
Recebeu-me uma lufada de ar frio; e embora o dia fosse
um dos mais tórridos do fim de junho, tive um
estremecimento ao transpor a porta e entrar num espaçoso
apartamento, cuja decoração suntuosa e de bom gosto
constituiu uma surpresa naquele ninho de penúria e
miséria. Um sofá dobrável atendia, agora de dia, à sua
função de sofá, e o mobiliário de mogno, o magnífico papel
de parede, as pinturas antigas e as esplêndidas estantes de
livros indicavam antes o estúdio de um fidalgo que um
quarto de pensão. Percebi então que o quarto que ficava
sobre o meu - o quartinho com garrafas e máquinas,
mencionado pela Sra. Herrero - era simplesmente o
laboratório do doutor e que seus aposentos principais
ficavam naquele amplo apartamento adjacente, cujas
alcovas corretas e o grande quarto de banho lhe permitia
ocultar toda roupa e objetos gritantemente utilitários. O
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Dr. Muñoz, evidentemente, era um homem com berço,
cultura e excelente gosto.
A figura que eu tinha diante de mim era a de um homem
baixo, mas muito bem proporcionado, trajado numa
indumentária um tanto formal, de corte e feitio perfeitos.
Um rosto bem-feito, de expressão senhoril, mas em nada
arrogante, tinha a orná-lo uma barba aparada e um pouco
grisalha, enquanto um pincenê antiquado se antepunha a
olhos grandes escuros, equilibrando-se num nariz aquilino
que dava um toque mourisco a urna fisionomia em tudo
mais marcadamente celtibérica. Uma cabeleira basta e
bem-tratada, que indicava visitas regulares de um
barbeiro, partia-se com muita elegância sobre a testa alta.
E toda a impressão que aquele vulto transmitia era de
acentuada inteligência, origens nobres e excelente
educação.
Não obstante, ao contemplar o Dr. Muñoz naquela lufada
de ar frio, fui tomado de uma repugnância que nada em
seu aspecto poderia justificar. Somente sua tez, que se
inclinava à palidez e a frieza do toque de sua mão
poderiam ter dado uma base física a essa sensação, porém
mesmo essas coisas teriam de ser relevadas, dada a
notória invalidez do homem. É ainda possível que tenha
sido aquele frio singular que me indispôs, pois tamanha
gelidez era anormal num dia tão quente, e o anormal
sempre desperta aversão, suspeita e temor.
........No entanto, a repulsa logo cedeu lugar à admiração,
uma vez que a extrema perícia daquele estranho médico se
manifestou incontinenti, a despeito da algidez e do tremor
de suas mãos exangues. A um olhar ele compreendeu
minhas necessidades, atendendo-as com habilidade de
mestre; enquanto me assistia, consolava-me com voz
harmoniosamente modulada, embora inusitadamente oca e
sern timbre, assegurando-me ser o mais implacável dos
inimigos da morte, e que havia dissipado sua fortuna e
perdido todos os amigos numa vida inteira de experiêcias
extravagantes, dedicadas à repressão e extirpação de
tamanho flagelo. Parecia haver nele um certo fanatismo
benevolente, e ele não cessava de divagar, quase
garrularnente, enquanto me auscultava o peito e preparava
uma beberagem de drogas trazidas de seu pequeno
laboratório. Era evidente que a companhia de uma pessoa
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bem-nascida representava para ele uma rara novidade
naquele ambiente de indigência e o levava a uma desusada
loquacidade, ao ser empolgado por recordações de dias
melhores.
Sua voz, embora estranha, era ao menos apaziguadora; e
eu não percebia sequer o som de sua respiração enquanto
ele pronunciava aqueles longos períodos, tão cheios de
lhaneza. O doutor procurava afastar meus pensamentos da
crise cardíaca, discorrendo sobre suas teorias e
experiências. Lembro-me bem do tato com que ele
procurou consolar-me da debilidade de meu coração,
insistindo em que a vontade e a consciência são mais
fortes do que a própria vida orgânica, de forma que se
urna organização física for originalmente saudável e
preservada com cuidado pode, mediante um realce
cientifico dessas qualidades, reter uma espécie de
animação nervosa, apesar das mais sérias lesões, defeitos
ou mesmo ausências no conjunto de órgãos específicos.
Algum dia, dis-se-me ele meio a brincar, poderia me
ensinar a viver (ou ao menos manter alguma espécie de
existência consciente) até mesmo sem coração! Quanto a
si, afligia-o uma série de enfermidades que exigiam um
regime rigorosíssimo, que incluía o frio constante. Qualquer
elevação marcada da temperatura poderia, caso se
prolongasse, afetá-lo de maneira fatal; e a frialdade de sua
moradia, cerca de 13º centígrados, era mantida por um
sistema absorvente de arrefecimento a amônia. As bombas
do sistema eram impulsionadas pelo motor a gasolina que
eu já escutara de meu quarto.
Aliviado de minha crise num tempo maravilhosamente
breve, deixei aqueles aposentos frígidos como discípulo e
servidor do talentoso recluso. Depois disso, fiz-lhe várias
visitas, devidamente agasalhado. Ouvia-lhe o relato de
pesquisas secretas e resultados quase espantosos, e
estremecia um pouco ao examinar os volumes incomuns e
inacreditavelmente antigos em suas estantes. Por fim,
convém acrescentar, fiquei quase curado para sempre de
minha doença, devido à sua terapia tão efetiva. Ao que
parece, ele não desdenhava os encantamentos dos
medievalistas, porquanto acreditava que essas fórmulas
crípticas contivessem raros estímulos psicológicos, que
poderiam, concebivelmente, exercer efeitos singulares na
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substância de um sistema nervoso que tivesse sido
abandonado pelas pulsações orgânicas. Comoveu-me o que
ele contou sobre o idoso Dr. Torres, de Valência, que
compartilhara com ele suas primeiras experiêcias, e que
cuidara dele por ocasião da grave enfermidade que o
acometera dezoito anos antes, e da qual procedia sua atual
debilitação. Pouco depois de haver o venerando facultativo
salvo o colega, ele próprio sucumbira ao horrendo inimigo
que combatera. Possivelmente o esforço tivesse sido
excessivo; o Dr. Muñoz deixou claro, em sussurros
(conquanto não descesse a minúcias), que os métodos de
cura haviam sido excepcionalíssimos, envolvendo cenas e
processos desaprovados por galenos idosos e
conservadores.
Com o passar das semanas, observei com pesar que, com
efeito, meu novo amigo estava, lenta mas
inequivocamente, perdendo suas forças, tal como sugerira
a Sra. Herrero. O aspecto lívido de sua fisionomia se
intensificava, a voz se fazia mais vazia e indistinta, seus
movimentos musculares mostravam menor coordenação,
seu espírito e sua força de vontade revelavam menos
fortaleza e iniciativa. Não parecia ele de modo algum
desatento a essa triste transformação, e pouco a pouco
tanto sua expressão quanto sua conversa foram adquirindo
uma ironia desagradável que restaurou em mim a repulsa
sutil que eu havia sentido de início.
Ele foi cultivando caprichos esquisitos, afeiçoando-se a
especiarias exóticas e incenso egípcio até que seu quarto
recendia como a tumba de um faraó no Vale dos Reis. Ao
mesmo tempo, aumentava seu desejo de ar frio, e com
minha ajuda ele ampliou a tubulação de amônia de seu
quarto e modificou o sistema de bombas e a alimentação
de sua máquina de refrigeração, até conseguir manter a
temperatura entre 1º e 4,5º centígrados e, finalmente, na
casa de 2º centígrados negativos. O banheiro e o
laboratório, naturalmente, eram menos frios, para que a
água não se congelasse no encanamento e os processos
químicos não se vissem prejudicados. O inquilino do
cômodo ao lado do dele queixou-se do ar gélido que
entrava pela porta de ligação; por isso, ajudei o doutor a
instalar re-posteiros pesados, que mitigassem o problema.
Uma espécie de horror crescente, de feitio bizarro e
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mórbido, parecia possuí-lo. Ele falava da morte sem
cessar, mas ria cavamente quando coisas como
providências fúnebres ou de sepultamento eram
obliquamente sugeridas.
De maneira geral, ele se converteu em companhia
desconcertante e até repelente. Contudo, por gratidão ao
modo como ele me curara, eu não me dispunha a
abandoná-lo aos estranhos que o cercavam, e tinha o
cuidado de espanar-lhe o quarto e atender às suas
necessidades de cada dia, metido num sobretudo pesado
que eu havia comprado especialmente para esse fim. Da
mesma forma, eu fazia grande parte de suas compras e
observava com assombro alguns dos produtos químicos
que ele encomendava a farmacêuticos e fornecedores de
laboratórios.
Uma crescente e inexplicada atmosfera de pânico parecia
avolumar-se em seu apartamento. Toda a casa, como já foi
dito, recendia a bolor; entretanto, o odor em seu
apartamento era pior e, apesar de todas as especiarias e
do incenso, bem como dos acres produtos químicos dos
banhos (agora contínuos) que ele insistia em tomar sem
ajuda, percebi que o cheiro deveria estar ligado à sua
enfermidade, e tive um calafrio ao refletir sobre qual
poderia ser. A Sra. Herrero persignava-se ao olho e deixouo
de bom grado aos meus cuidados, sem nem mesmo
permitir que o filho, Esteban, continuasse a lhe prestar
serviços. Quando eu sugeria que ele buscasse o auxílio de
outros médicos, o inválido revelava fúria, tão grande
quanto ele parecia atrever-se a demonstrar. Era evidente
que ele receava o efeito físico da emoção violenta, e no
entanto sua força de vontade e seus ímpetos antes se
fortaleciam que minguavam, e ele se recusava a guardar o
leito. A lassidão dos primeiros tempos de sua enfermidade
deu lugar a um retorno de sua disposição fogosa, de modo
que ele parecia arremessar reptos ao rosto do demônio da
morte no momento mesmo em que esse antigo inimigo se
apossava dele. A simulação do comer, que sempre fora,
curiosamente, quase um formalismo, foi praticamente
abandonada; e somente a força mental parecia protegê-lo
do colapso total.
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Adquiriu ele o hábito de redigir longos documentos que
cuidadosamente lacrava e cercava de recomendações para
que eu os transmitisse, após sua morte, a certas pessoas
por ele nomeadas - na maioria letrados das Índias
Orientais, mas entre as quais havia um outrora famoso
médico francês, hoje em geral tido como morto, e a
respeito de quem as coisas mais inconcebíveis haviam sido
murmuradas. Quero dizer desde logo que queimei todos
esses papéis, sem entregá-los nem abrí-los. Seu aspecto e
sua voz se tomaram assustadores ao extremo, e sua
presença quase insuportável. Num certo dia de setembro,
ao vê-lo de relance, um homem que tinha vindo consertar
sua lâmpada elétrica de mesa foi tornado de uma crise
epiléptica, crise essa para a qual o doutor prescreveu
remédios eficientes, enquanto se mantinha longe da vista.
Aquele homem, é bom que se diga, havia passado pelos
horrores da grande guerra sem haver sucumbido a um
susto tão medonho.
Foi então que, em meados de outubro, sobreveio, com
subitaneidade estarrecedora, o horror dos horrores. Numa
noite, mais ou menos às onze horas, a bomba da máquina
refrigeradora quebrou-se, de forma que dentro de três
horas o processo de resfriamento amoniacal se tornou
impossível. O Dr. Muñoz chamou-me, batendo com os pés
no chão, e pus-me a trabalhar desesperadamente para
reparar o dano, enquanto meu anfitrião praguejava num
tom cuja cavidade inerte e impetuosa foge a qualquer
descrição. Não obstante, meus esforços amadorísticos
foram baldados; tendo ido buscar um mecânico de uma
garagem vizinha, que ficava aberta a noite toda, ficamos
sabendo que nada poderia ser feito até de manhã, quando
um novo pistão teria de ser adquirido. A indignação e o
medo do ermitão moribundo, elevando-se a proporções
grotescas, parecia ser de molde a destruir o que restava de
seu físico fraquejante; e em certo momento um espasmo
fez com que ele levasse as mãos aos olhos e corresse ao
banheiro. Saiu dali tateando o caminho, com o rosto
envolvido em bandagens, e nunca mais lhe vi os olhos.
O frio do apartamento diminuía agora sensivelmente, e ao
dar as cinco da manhã o médico retirou-se para o
banheiro, ordenando-me que o mantivesse abastecido com
todo o gelo que eu pudesse obter em farmácias e bares. Ao
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voltar de minhas excursões, às vezes desencorajadoras, e
deitar o que havia conseguido junto à porta do banheiro,
eu escutava um contínuo espadanar de água lá dentro,
enquanto uma voz grossa pedia "Mais... mais!" Por fim,
raiou um dia quente, e uma a uma as lojas se abriram.
Pedi a Esteban que ajudasse com o provisionamento de
gelo enquanto eu ia adquirir o pistão da bomba, ou que
encomendasse o pistão enquanto eu continuava a buscar
gelo; no entanto, instruído pela mãe, ele se recusou
peremptoriamente a ajudar.
Por fim, contratei um vadio de aspecto miserável que
encontrei na esquina da Oitava Avenida para manter o
paciente abastecido de gelo, trazido de uma lojinha onde o
apresentei, e me entreguei, diligente, à tarefa de localizar
um pistão de bomba e de contratar operários que
soubessem instalá-lo. A tarefa parecia quase interminável,
e fui tomado de ira quase tão violenta quanto a do ermitão
ao ver as horas se escoando num ciclo infatigável de
telefonemas infrutíferos, de correrias de um lado para
outro, indo ali e acolá' de metrô e transporte de superfície.
Mais ou menos ao meio-dia encontrei um fornecedor
satisfatório numa rua remota do centro da cidade, e
aproximadamente à 1:30 da tarde cheguei à pensão com
as peças necessárias e dois mecânicos fortes e inteligentes.
Eu havia feito tudo quanto me fora possível e esperava
chegar em tempo.
O negro terror, no entanto, me precedera. A pensão se
transformara numa casa de orates, e sobre as vozes
aterradas escutei um homem rezando com voz gravíssima.
Havia pelo ar um quê de diabólico e os inquilinos rezavam
o rosário com maior vigor ao sentirem o cheiro que exalava
por baixo da porta fechada do médico. O vagabundo que
eu contratara, ao que parece, havia fugido aos gritos e de
olhos esbugalhados pouco depois de haver feito sua
segunda entrega de gelo, talvez corno resultado de
excessiva curiosidade. Não podia, está claro, trancar a
porta ao sair; no entanto, agora ela estava fechada,
presumivelmente por dentro. Não se ouvia som algum,
com exceção de uma espécie indefinível de vagaroso e
denso gotejar.
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Depois de consultar a Sra. Herrero e os trabalhadores, e
apesar do medo que me corroía a alma, opinei que
deveríamos arrombar a porta; todavia, a senhoria
descobriu uma maneira de virar a chave pelo lado de fora,
com auxílio de um arame. Havíamos previamente aberto as
portas de todos os outros quartos naquele corredor, além
de descerrado as janelas até em cima. Agora, protegendo
os narizes com lenços, invadimos, trêmulos, o amaldiçoado
quarto, que resplendia com o sol quente do começo da
tarde.
Uma espécie de trilha escura e lodosa levava da porta
aberta do banheiro até a porta do corredor, e dali à
escrivaninha, onde uma pocinha horrorosa se acumulara.
Havia ali alguma coisa rabiscada a lápis, como que por um
cego trêmulo, num pedaço de papel nojentamente
manchado, ao que parecia pelas próprias garras que
haviam traçado as apressadas palavras finais. Depois a
trilha conduzia ao sofá e terminava de um modo que não
pode ser descrito.
O que estava, ou tinha estado, no sofa não posso nem
ouso dizer aqui. Mas eis o que decifrei no papel
pegajosamente manchado, antes de riscar um fósforo e
reduzí-lo a cinzas; o que decifrei tornado de pânico,
enquanto a senhoria e os dois mecânicos saíam em
disparada daquele lugar infernal para ir relatar suas
histórias incoerentes na delegacia de polícia mais próxima.
As palavras nauseantes pareciam quase inacreditáveis
naquele fulgor amarelo de sol, com o matraquear de
automóveis e caminhões que vinham subindo
ruidosamente a Rua 14, mas, no entanto, confesso que
acreditei nelas naquele momento. Se acredito agora
naquelas palavras, honestamente não sei dizer. Existem
coisas a respeito das quais é melhor não especular, e tudo
quanto posso dizer é que detesto o cheiro de amônia e
sinto-me desfalecer ante uma lufada de ar inusitadamente
frio.
"O fim chegou", dizia o rabisco pestilencial. "Não haverá
mais gelo... o homem olhou e correu. Fica cada vez mais
quente e os tecidos não poderão durar mais. Imagino que
saibas... o que eu disse sobre a vontade, os nervos e o
corpo preservado depois que os órgãos cessassem de
12
funcionar. Era uma boa teoria, mas não podia ser mantida
indefinidamente. Houve uma deterioração gradual que eu
não previra. O Dr. Torres sabia, mas o choque o matou.
Não pôde suportar o que teria de fazer; tinha de me meter
num lugar estranho e escuro, mas atentou à minha carta e
me fez voltar, com seus cuidados. E os órgãos jamais
voltariam a funcionar novamente. Tinha de ser feito à
minha maneira (preservação artificial), pois vês: eu morri
naquela época, há dezoito anos."
************
13
SOBRE O AUTOR E SUA OBRA
H. P. LOVECRAFT
(1890-1937)
H. P. Lovecraft é um exemplo
extraordinário da literatura moderna.
Não pode ser considerado apenas um
escritor de histórias de terror.
Seus livros e contos carregam uma carga fortíssima de
fantasia e imaginação. Suas principais influências são os
gênios Edgar Allan Poe, Hoffmann e Arthur Machen.
Em seus delírios literários, desfilam criaturas
extraterrestres fantásticas, cenários inacreditáveis,
narrativas alucinantes e lendas de remontam de tempos
imemoriais.
Lovercraft foi em vida, um homem realmente estranho.
Quase não tinha amigos e se comportava como um
misantropo. Foi um escritor compulsivo de cartas, com
mais de 100 mil registradas durante sua vida. Comparado
ao talento imaginativo de Lewis Carrol e J.R.R. Tolkein,
Lovecraft morreu praticamente desconhecido do público e
crítica.
Principais Obras:"Um Sussurro nas Trevas", "O Chamado
de Cthulhu", "Sombras Perdidas no Tempo", "O Caso de
Charles Dexter Ward", "A Tumba", "Nas Montanhas da
Loucura", "À Procura de Kadath", "A Maldição de Sarnath",
"Demônios de Randolph Carter" e "História do
Necronomicon".

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